Quilombo em Salto de Pirapora tem 24 famílias, agora proprietárias das terras por cessão oficial do Incra
Judite se integrou na comunidade há 16 anos - Por: Adival V. Pinto |
Com 36 anos de idade, mãe de oito filhos, Lucimara Rosa de Aguiar traz no sorriso a tranquilidade de quem conseguiu superar todas as adversidades, preconceitos e carência de recursos e hoje tem orgulho de onde veio e da herança que deixará. Mulher, negra e ascendente de quilombolas, Lucimara representa a união das duas datas comemorativas que se celebram neste domingo, o Dia das Mães e o Dia da Abolição da Escravatura. Bisneta de escravos, ela é a matriarca de uma das 24 famílias que ainda hoje vivem no quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, onde nasceu e lutou para que os seus filhos se criassem.
Embora o Dia das Mães seja um momento de melancolia íntima, resultado da saudade que ainda sente da mãe, falecida há 12 anos, neste ano a comemoração para Lucimara e outras mães do Cafundó tem um sabor especial. Elas têm a certeza de que toda a herança vinda dos antigos escravos que fundaram o quilombo será garantida para as futuras gerações, com a concessão da posse definitiva das terras, em fevereiro deste ano pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). "Seria o melhor presente que poderia dar para minha mãe, a conquista de uma luta de muitos anos", revela. A mãe de Lucimara foi uma da lideranças do Cafundó que na década de 70 se mobilizaram para reaver a área que vinha sendo invadida pelos grileiros e superar toda as dificuldades que a comunidade vivenciava. "Ela chegou a ir para Brasília algumas vezes para falar com os políticos. Nunca desistia de lutar", afirma.
Essa herança de orgulho e resistência, Lucimara faz questão de repassar para seus filhos. Ela é uma das poucas pessoas da comunidade que ainda fala a cupópia, língua original dos quilombolas, resultado de uma mistura de dialetos angolanos com o português colonial, considerado um dos principais patrimônios culturais da comunidade. "Faço questão que meus filhos aprendam pelo menos algumas palavras, pois só assim a nossa cultura não vai morrer. Quero deixar isso para eles, assim com minha mãe deixou para mim".
Mas nem sempre ser negra e moradora do quilombo foi motivo de orgulho para Lucimara. Quando tinha que deixar a comunidade para ir à escola, ela enfrentava o preconceito e gozação dos colegas de classe. "Muita gente da comunidade nem queria aprender a cupópia porque tinha vergonha e isso fez com a língua fosse se perdendo", diz. Além da diferença cultural, a própria cor da pele já era motivo de humilhação por parte de outras crianças. "Viam um urubu e diziam que era meu parente. Eu sofri muito com tudo isso, tinha dia que não queria voltar para a escola, mas minha mãe dizia que não poderia me intimidar". Lucimara diz que até hoje os seus filhos ainda sofrem com esse tipo de problema e ela relata sua experiência para fazê-los enfrentar esse tipo de preconceito. Ela reconhece que não é fácil ser mãe de oito filhos e cuidar de tudo sozinha, pois o marido está trabalhando em uma construção no Mato Grosso, e ainda trabalhar para trazer dinheiro para casa.
Mistura de raças
Foto: Adriano Vincler - Fevereiro 2012 |
Se engana quem pensa que o quilombo Cafundó se restringe a moradores da raça negra. Há muito tempo a mistura de raças se estabeleceu de forma homogênea na comunidade. Judite Oliveira Pires, 73 anos, é um exemplo disso. Proveniente de outra comunidade, ela veio para o Cafundó depois de se casar com um quilombola, aos 16 anos. E foi lá que construiu sua grande família. São onze filhos (todos nascidos com parteira na própria casa), tantos netos que ela já perdeu a conta, e mais cinco bisnetos. Apesar da pele branca, Judite tem a cultura africana enraizada numa personalidade forte, de quem já teve que enfrentar as adversidades e o preconceito, já que passou a maior parte da sua vida dentro do quilombo.
Viúva há 15 anos, Judite sente orgulho de pertencer a uma das famílias que resistiu a toda luta para permanecer no Cafundó. "Houve muita briga por aqui. A gente ouvia tiro pra todo lado e até gente da mesma família brigava por causa de terra". Além da disputa pela área, ela ainda tinha que enfrentar a aridez do lugar. "Sempre trabalhei na roça. Era tudo muito custoso. Sabe que nem vi meus filhos crescerem. Quando me dei conta, já estavam grandes e ajudando na casa".
Quatro dos seus filhos já se mudaram do Cafundó, mas o restante permanece na comunidade criando seus próprios filhos. "Mesmo os que não moram mais aqui vêm todo fim de semana.". Judite nunca aprendeu a língua cupópia, mas o marido, que era neto de escravos, passou essa herança cultural para alguns dos filhos. "Isso aqui é a nossa vida. Valeu a pena ter criado minha família aqui e agora ver tudo o que conquistamos".
Rosimeire Silva
Libertação de escravo origina o quilombo
Fotos: Adriano Vincler - Outubro 2009 |
A comunidade ainda hoje vive da agricultura de subsistência e pequenas criações de animais. Recentemente passaram a cultivar produtos em estufas que são vendidos como fonte de renda para algumas famílias. (R.S.)
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