Notícia publicada na edição de 19/12/2010 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno D.
Fotos: Adriano Vincler de Campos |
Cafundó - Salto de Pirapora-SP - Clique na imagem para ampliar o tamanho |
A luta para provar que os 209,6 alqueires de terra - que eram 218, em 1.888 - pertenciam aos ex-escravos Joaquim Congo e Ricarda, depois de tê-los herdado de um fazendeiro, durou décadas. Há pouco mais de um ano, mais exatamente no dia 23 de novembro de 2009, as 18 famílias que vivem no Cafundó, comunidade remanescente de quilombo, acharam que a batalha estava ganha - elas receberam, das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o decreto que tornou a área de interesse social para desapropriação e consequente regularização fundiária em nome da comunidade, o primeiro passo para serem, finalmente, proprietários da terra onde vivem desde que nasceram. Porém, mais de 12 meses depois, nada mudou no que hoje é um vilarejo na região rural de Salto de Pirapora.
Quem visita o Cafundó, instalado num vale a 14 quilômetros do centro da cidade, encontra uma vila de pouco movimento, onde vivem famílias humildes. Algo bem diferente do que se pode esperar de um espaço que já foi cenário de filme e fonte de informações para centenas de livros e pesquisas. Os descendentes dos escravos não vivem mais na miséria, mas isso não significa que o dia-a-dia é confortável, como a fama do local pode sugerir. “Hoje a situação até que é boa, pois teve épocas em que passamos fome”, lembra Marcos Norberto de Almeida, de 50 anos, que mora no Cafundó desde que nasceu. As casas, a maioria descaracterizada das versões originais, são simples, muitas sem reboque. Apenas uma, feita de taipa, mantém o cenário do que era o Cafundó há mais de um século. Não há escola, posto de saúde e nenhum tipo de comércio.
O cotidiano se resume a lidar com a plantação de milho, feijão e cana, usados para a alimentação diária, e às rodas de conversa debaixo das árvores. Mas o espírito dos descendentes de escravos está longe de querer sombra e água fresca. A luta pela terra - que apesar de difícil, é relatada com orgulho - se dá exatamente porque o pessoal do Cafundó quer trabalhar. “A gente não quer receber comida aqui, quer é ter condições de produzir tanto para poder mandar comida para outros lugares, sobreviver da plantação”, é o que pensa Marcos. Porém, sem a posse da terra não há apoio governamental e linhas de crédito disponíveis para o pontapé inicial neste projeto. “A gente não precisa só comer, precisa também de outras coisas”.
Há muito tempo...
O mais recente passo da comunidade do Cafundó na luta pelas suas terras aconteceu no dia 7 de dezembro. Nesta data foi realizada uma reunião na sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), na capital paulista, na qual os moradores exigiram que tudo o que foi prometido fosse colocado no papel - principalmente o compromisso de liberação dos estudos técnicos sobre a área, dividida em quatro glebas, para que a fase de indenização, desapropriação e registro do terreno em nome da Associação Remanescente de Quilombo Quinbundo do Cafundó saia antes de novembro de 2011 - data em que expira a validade do documento entregue por Lula.
Porém, este foi apenas mais um capítulo da batalha pela posse do terreno onde está a comunidade do Cafundó, que é antiga. Diz a história que na década de 40 o espaço começou a ser cobiçado por fazendeiros - estes compraram lotes, grilaram grande parte das terras ou, por vezes, invadiram a área. Em 1.999, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), reconheceu que o local é um remanescente de quilombo. “O que eu ouvi, lá na Bahia, foi que até março deste ano estaria tudo resolvido. A gente esperou, mas não aconteceu nada”, conta Regina Aparecida Pereira, que há sete anos atua como uma espécie de líder da comunidade. É ela que acompanha reuniões, reúne documentos e, junto com o marido, Marcos Norberto, se mantém incansável. Por mais antigo que seja o morador do Cafundó, quando o assunto é esse o que se ouve é: “fala com a Regina, ela que está por dentro de como está a situação”.
A líder da comunidade, a quem coube representá-la na cerimônia de entrega do documento pelo presidente da República, que aconteceu na Bahia, conta que depois daquele dia os moradores não obtiveram mais nenhuma informação oficial sobre o andamento do processo. “Tivemos uma reunião em março e outra somente agora em novembro”. Neste meio tempo, técnicos do Incra fizeram a medição do terreno, atualização de valores e recadastramento das famílias. Porém, o que poderia ter sido um processo tranquilo, acabou gerando insatisfação, por parte da comunidade, por conta da falta de informação.
“Eles desmarcaram reuniões duas vezes. Na segunda vez não tivemos dúvida: fomos até lá, mais cedo, fizemos pressão e o superintendente nos atendeu”, contou Regina. O rápido encontro, que acabou gerando nova reunião 15 dias depois, resultou num documento no qual o Incra estabelece um prazo para a titulação das terras. “Para a gente não ficar ouvindo e depois ter que voltar lá e repetir tudo de novo, pedimos para que colocassem isso no papel e assinassem embaixo”. O terreno, dividido em quatro glebas, será regularizado - segundo o Incra - na seguinte ordem: gleba B (até o final deste ano), gleba C (janeiro de 2011) e glebas A e D (março de 2011).
Além da longa espera que acompanha a comunidade, a preocupação é porque o documento que eles possuem tem validade de apenas dois anos. “Já passou um ano. Para nós isso é um descaso total. O pior é que mostramos a eles a lei que fala deste prazo, o chefe da divisão de Quilombos disse que a legislação é sobre assentamentos. Mas não é, fala de áreas de interesse social. Eles criam um monte de leis, que dizem que defendem as comunidades quilombolas, existem muitas políticas públicas para quilombos, só que a sociedade não sabe o que a gente precisa fazer para conseguir e, mesmo assim, ainda não consegue”, desabafou Regina.
O Incra, por meio de sua assessoria de imprensa, confirmou que durante o ano de 2010 foi realizado o trabalho de avaliação do imóvel (terreno), que consiste em um estudo minucioso da cadeia dominial da propriedade, além de levantamento completo de benfeitorias. Trata-se de um laudo que subsidia a ação judicial, que o órgão terá que ingressar, na Justiça, para obter a posse do imóvel. Segundo o Incra, a partir deste levantamento acontecerá o depósito do valor da indenização, seguido do pedido judicial de posse e o registro em nome da comunidade. A previsão “oficial” do órgão é que a regularização aconteça no segundo semestre de 2011 - já que a ação judicial tem preferência legal, ou seja, ela é prioritária para julgamento, e seu mérito não pode ser interrompido por ações contrárias. Aos moradores do Cafundó, resta esperar.
Quilombos no Brasil
Os quilombos eram núcleos habitacionais e comerciais de resistência à escravidão, já que abrigavam escravos fugidos de fazendas. Embora não existam mais quilombos no Brasil, comunidades remanescentes se instalaram em vários estados. No total, 743 foram identificadas, mas só 29 foram tituladas oficialmente pelo governo - dentre elas o Cafundó.
Estima-se que 2 milhões de pessoas vivam nestas comunidades organizadas para garantir o direito à propriedade da terra. Segundo a Fundação Cultural Palmares, do governo federal, que confere às comunidades o direito ao título de posse da terra, os habitantes remanescentes dos quilombos preservam o meio ambiente e respeitam o local onde vivem.
Mas sofrem constantes ameaças de expropriação e invasão das terras por inimigos que cobiçam as riquezas em recursos naturais, fertilidade do solo e qualidade da madeira. (Fonte: IBGE).
Curiosidades
Todos os moradores do Cafundó ainda preservam o dialeto chamado Cupópia, construído a partir de uma mistura de línguas africanas, usado para a comunicação exclusiva entre eles. A língua é absolutamente incompreensível para quem não a conhece.
- Apesar de existir desde o século XIX, o Cafundó passou a ser conhecido além das fronteiras de Salto de Pirapora em 1.978, ano em que foram publicadas as primeiras reportagens sobre o local pelo Jornal Cruzeiro do Sul e O Estado de São Paulo. (Relatório Técnico-Científico - Itesp)
CAFUNDÓ - [ 19/12 ]
Comunidade diz que benefícios só chegam com muito esforço
Regina Helena Santos
Notícia publicada na edição de 19/12/2010 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 3 do caderno D.
Marcos Norberto líder da Comunidade do Quilombo Cafundó e Professor Joel do "jornal Liberdade" (foto Adriano Vincler de Campos) |
"Se a gente ficar quieto com determinadas coisas que acontecem, eles amarram a gente no tronco outra vez. É bem assim que funciona aqui. O descaso do governo com o Cafundó é uma coisa gritante”
A frase de Regina para exemplificar o espírito das 18 famílias que moram no terreno a 14 quilômetros do centro de Salto de Pirapora é forte, mas um desabafo diante das dezenas de situações em que a comunidade precisa pedir, correr atrás, insistir, mostrar documentos e não perder de vista o andamento dos processos que envolvem o nome do quilombo para garantir que algo aconteça. E isso para coisas muito mais simples que a titulação de terras, como a conquista de transporte gratuito para levar as crianças até a escola ou atendimento de saúde.
Os recursos para a sobrevivência vêm de cadastros no programa federal Bolsa Família e dos salários de alguns, já que muitos moradores acabaram optando por trabalhar nas redondezas, principalmente nas chácaras da vizinhança. “Para a história do quilombo isso não é bom, mas não dá para segurar as pessoas aqui”, diz Regina. Os jovens são estimulados a ficar no local, mas apenas a metade deles opta por isso, como foi o caso de Camila Rosa Almeida, de 20 anos. “O sonho do meu pai e dos meus tios sempre foi ganhar essas terras. Pretendo ficar aqui por causa dessa luta triste que eles têm durante tantos anos. As pessoas sonham e não vêem o resultado deste sonho. É triste isso”, falou.
O pai de Camila, Adauto Norberto, de 64 anos, mesmo com a saúde debilitada continua lidando com a terra. Otimista, ele lembra que sua avó e sua mãe morreram na vila sonhando em um dia ter a posse daquele local. “Perto do que já lutamos, agora parece que está na mão”. A questão das terras - ou da falta de propriedade delas - ainda é o que impede a comunidade de “crescer”, como dizem os moradores, referindo-se à ausência de políticas públicas para apoiar as famílias. “Eles colocam para a gente que enquanto não tiver titulação não dá para implantar nada. Mas precisaremos de ajuda. Eles vão nos devolver a terra mas não temos um centavo para começar as coisas por aqui”, diz Regina. No sonho, além das condições ideais para a “roça”, uma escola para as crianças e um posto de saúde.
Ausência
A presença do governo no Cafundó não é vista no cotidiano. Existem resquícios de projetos e ações governamentais, como um galpão equipado com computadores e uma pequena biblioteca. O atendimento de saúde acontece por meio do programa Médico da Família, mas a comunidade diz que é precário. “O médico e a auxiliar vêm uma vez por semana e ficam aqui entre 9h e 11h. Algumas semanas não aparecem. Sabemos que teriam que vir duas vezes por semana, fazer palestras de orientação, ficar aqui o dia todo. Mas não é o que acontece”, denuncia Regina. Os pacientes são atendidos nas dependências do centro comunitário, sem qualquer infraestrutura de consultório médico. Para os tratamentos, a equipe traz diclofenaco, dipirona e outros medicamentos para cuidar de sintomas mais simples. “Se alguém tiver um infarto aqui, morre”, reclama a líder comunitária.
Sem apoio para a agricultura, eles sobrevivem da pequena safra de milho e feijão, somada a uma única cesta básica que a Prefeitura de Salto de Pirapora manda, por família, a cada intervalo de dois meses. As crianças do Cafundó estudam em escolas no centro de Salto de Pirapora e no Bairro da Barra. Para transportá-las, a administração municipal cede um ônibus, mas nem sempre foi tranquilo assim. “No começo eles tinham que pegar o transporte lá na estrada e trocar de ônibus quando chegavam no bairro Capão Redondo. Quantas vezes eles não tinham que vir a metade do caminho a pé, porque o ônibus quebrava”, lembra Regina.
Para ela, as dificuldades estão diretamente ligadas ao preconceito. “Há um estigma, por conta de episódios do passado, que o pessoal do Cafundó é violento”. Marcos vai mais longe: “essa cidade é muito preconceituosa”. Questionada sobre o apoio que dá ao Cafundó, a Prefeitura de Salto de Pirapora listou os mesmos serviços apresentados pelos moradores, com exceção do atendimento odontológico -que, segundo a administração municipal, acontece no Centro Municipal de Especialidades - e a oferta de cursos gratuitos de capacitação e geração de renda - fato que não foi citado pelos quilombolas.
Os deputados estaduais também apresentaram emendas para a conquista de benefícios ao Cafundó - mas grande parte destas nunca chegaram. Um exemplo foi um trator, que para sair precisava ser em nome da Prefeitura. “Não quisemos, porque não tínhamos nenhuma garantia de que, quando precisássemos, a máquina estaria aqui”, falou Marcos. Outro, uma estufa para plantio, ainda está emperrado. “Soubemos pela comunidade de Caçandoquinha, que também ganhou, do mesmo deputado, por acaso. Daí começamos a correr atrás da liberação, mas até agora nada. Temos que ficar em cima, apresentando papel, dizendo que a gente sabe, que não está desinformado. Senão eles passam a perna na gente”.
Histórias de verbas que “desapareceram” também são muitas. “O governo iria construir uma quadra poliesportiva, o que nunca aconteceu”. Doações sem sentido também fazem parte do dia-a-dia. “Eles mandaram essa quantidade enorme de calcário para a plantação, mas não temos nem onde guardar. Avisei, mas eles disseram que tinham que descarregar aqui”, contou Marcos. “Parece uma estratégia para queimar a comunidade. Daí eles dizem: ‘a gente mandou lá e eles deixaram estragar, não usaram’. Mas não temos nem terra para plantar!”.
Fonte de informação
Quase toda semana o Cafundó recebe pesquisadores, estudantes, equipes de reportagem e todo o tipo de gente que vê, na comunidade, uma fonte inesgotável de informações, história e cultura. “Conversamos muito sobre isso. Sabemos que não dá para parar com isso, não dá para negar as informações que eles buscam. Mas hoje em dia não dá mais para receber um pesquisador e não amarrar nada com ele. Colocamos o que a gente precisa para ver como podem nos ajudar”, diz Regina. Marcos, que convive com esta situação desde que nasceu, já se mostra mais incomodado. “No meio de mil, só uma meia dúzia ajuda. Algumas vezes me sinto usado. Demos muitas entrevistas porque o pessoal falava que se a gente não fosse conhecido iríamos perder nossas terras. E olhe só, a situação continua a mesma”.
Com o sorriso no rosto, ele conta um destes episódios. “Fomos num encontro de quilombos, no litoral, e quando paramos num posto de gasolina vimos uma foto enorme das nossas meninas. Era uma revista que veio nos entrevistar. Eles estão vendendo, mas a maioria das vezes esse material nem chega aqui para a gente ver. Outro dia o autor de um livro que fala do Cafundó se negou a nos doar um exemplar”, reclamou. Situações como, por exemplo, a visita de equipes de televisão e jornalismo que pedem para que os homens carreguem toras de madeira para simular os tempos de trabalho escravo também compõem o extenso repertório dos homens e mulheres do Cafundó que têm, na sua história, o único bem que ninguém pode tirar.
http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=86&id=377270
http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=86&id=377272
domingo, 19 de junho de 2005
Cafundó, Onde Angola encontra o Brasil
No interior de São Paulo, uma comunidade quilombola recebe apoio até mesmo de africanos para manter suas tradições
Por Fernanda Pennachia
Imagem Adriano Ávila
Nos dicionários de português, “cafundó” é sinônimo de lugar distante, de difícil acesso ou “fim-de-mundo”. Mas para um grupo de 98 brasileiros descendentes de escravos, essa palavra significa o lar, uma terra tão importante a ponto de suscitar a visita de africanos em busca de um elo cultural. Cafundó está logo ali, na zona rural da pequena Salto de Pirapora (SP). Ela é, na verdade, uma tribo que remonta aos tempos da Colônia e do Império. Um quilombo a meros 130 quilômetros de São Paulo.
Se muitos brasileiros nem sequer ouviram falar dessa comunidade, para os angolanos, por exemplo, a história é diferente. Há 25 anos Neves Mussaqui, pastor da Igreja Presbiteriana Africana, lá esteve para iniciar um trabalho de preservação cultural. E recentemente, ele retornou. Foi a segunda visita do pastor a esse pedacinho da África no Brasil. Um quilombo que guarda em sua rotina muitos aspectos de Kikongo - a tribo de onde Mussaqui nasceu, no norte de Angola.
Não é algo tão visível. A única construção que sobreviveu desde a época da escravidão é uma pequena capela, que outrora fora o altar do candomblé. Hoje, nela se cultuam os santos do catolicismo, exibidos em imagens ao lado de fotografias de parentes já falecidos. Os vestígios da religião africana ou alguma imagem de orixás do candomblé existem, mas de forma sutil.
A herança mais importante - viva até hoje - é de ordem oral: “Nhogúndi!”, brada o agricultor Otávio de Almeida Caetano, ao reconhecer o religioso africano. A palavra significa “pastor” no dialeto Kikongo. Mais de um século depois do fim o tráfico negreiro para o Brasil, os moradores do Cafundó ainda mantém vivo o idioma falado por seus antepassados.
Ciente da necessidade de preservar esse tesouro lingüístico, o religioso angolano veio ao interior paulista para estreitar os laços com os primos brasileiros e estimular o interesse pelo dialeto. Trouxe consigo uma apostila repleta de palavras do idioma kikongo. Queria corrigir possíveis danos causados pelo tempo.
Na verdade, em Cafundó fala-se a cupópia – nome que se dá à mistura de três dialetos tribais angolanos: o kikongo (típico do norte de Angola), o kimbundo (do centro do país) e o umbundo, (do sul). Um dialeto que resiste ao tempo através de uma tradição exclusivamente oral.
Ainda hoje, o cupópia é usado com freqüência misturado ao português. São 115 substantivos, 15 verbos, oito adjetivos e dois advérbios. Além de metáforas quase poéticas. Um exemplo é o termo que se usa para definir quarto de dormir: em Cupópia é “injó de marrupa”’ - traduzido ao pé da letra: casa do sono.
A língua, contudo, corre sérios riscos de desaparecer. Em parte porque os jovens já não dão tanta importância à tarefa de aprendê-la. Mas a grande ameaça é o simples fim do quilombo em si. Doadas aos escravos após a assinatura da Lei Áurea, as terras totalizavam cerca de 200 alqueires no final do Século 19. A disputa começou de imediato. Com a morte do doador, os documentos da posse sumiram e o quilombo começou a sofrer a ação de invasores – uma história que se perpetua há mais de 100 anos.
Amparados na Constituição de 1988, que confere aos moradores de quilombos o direito à propriedade das terras originais, os cafundoenses conseguiram que fossem tombados os cerca de oito alqueires que lhes restaram – menos de 4% do território original. E o que é pior: de um terreno arenoso e difícil de plantar, o que dificulta a prosperidade local e deixa os quilombolas isolados na pobreza e fora das prioridades governamentais. Exemplos disso não faltam: um único telefone público atende aos 98 moradores do quilombo. Além disso, as crianças e jovens que freqüentam a escola precisam tomar o ônibus às seis horas da manhã. Depois disso só no meio da tarde.
Essa vida dura é compartilhada pela quase centena de habitantes, dividida em duas famílias. Os Caetano e os Pires. Os Pires são descentes do casamento de uma escrava com o seu senhor, Joaquim Oliveira, o doador das terras. As gerações que os sucederam foram se misturando aos brancos. Hoje os negros são minoria na comunidade. Alguns moradores têm cabelos claros e olhos verdes. Não por isso são menos descendentes que os negros. São os chamados, canfombes, ou brancos, no dialeto cupópia.
Os descendentes da família Caetano mantiveram a cor negra. São os vimbundos. Enfrentam mais preconceito que seus primos brancos e dificilmente conseguem emprego. Sem contar os problemas com a lei. No último lance dessa guerra, na década de 1990, os irmãos Caetano tiveram que enfrentar um júri após resistir à invasão de posseiros e causar a morte de um dos invasores. Acabaram absolvidos, graças à alegação de legítima defesa. Mas só em última instância, após um longo processo.
Marcos Norberto de Almeida é um emblema da luta que se empreende em Cafundó. Durante toda sua vida sentiu-se na obrigação de permanecer no local para garantir a sobrevivência da cultura e também a batalha pela devolução das terras que originalmente pertenciam à comunidade. Marcos, Jovenil e Adauto são os três irmãos vivos da família Caetano, tataranetos de Joaquim Congo, angolano vendido como escravo no Brasil, pioneiro do quilombo.
A esperança de reaver as terras saqueadas fez com que os irmãos resistissem à tentação de ir para cidades maiores e assumir uma vida “comum”. Decisão dolorosa: hoje, perto dos 50 anos, não viram sequer um metro quadrado de terra devolvida e amargam o preconceito entre os fazendeiros da região.
Os irmãos não conseguem trabalho e são tratados com hostilidade após tantos anos lutando pela terras. No dia a dia, encaram a dura rotina da subsistência. O canto do galo acorda Jovenil que levanta para tratar o pedacinho de terra onde ainda é possível plantar. Apenas alguns pés de feijão, milho, banana e mandioca, para consumo próprio. Da fibra da bananeira produzem um modesto artesanato e do brejo perto do poço colhem a taboa, matéria prima de grossas esteiras. Produções que tentam gerar alguma renda às famílias.
Regina, companheira de Marcos, diz que manter a tradição só trouxe desgraça ao Cafundó. “Nós não queremos mais ser um quilombo”, enfatiza.
Esse amargor, contudo, se dissipa nos finais de semana, quando é fácil ver formar uma roda de samba atrás do casarão central do vilarejo, onde um sombreiro formado pelas árvores convida a um gostoso descanso. Pandeiros, tambores, gogó e cachaça são a lei na hora do lazer. E todo final de tarde o casarão central se agita com a aula de capoeira do grupo Quinamba.
Entre uma “tinguerinha” de cachaça e uma de caipirinha, a roda de samba se transforma em roda de truco. Mas a conversa se anima mesmo é quando Jovenil conta uma de suas histórias. A melhor é a de quando foi arranhado por uma urtiga. De súbito olhou para trás e avistou uma cobra. Ele conta que chegou a sentir os sintomas de uma picada. Perdeu a força, caiu no chão, chamando pelo irmão. Marcos ria, já percebendo o engano. Interpreta a história como um ator. “Fui picado por uma urtiga”. E a prosa atravessa a noite até que o sono chegue.
Mesmo com essa alegria inocente estampada no rosto, os quilombolas não deixam de temer o futuro. “Eles dizem que pra sermos entendidos temos que falar na língua deles. Mas eu não tenho outra palavra pra dizer que estamos sendo roubados”. Regina se refere aos organismos do governo que teriam a função de ajudar o Cafundó. Trata-se do Instituto Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que é responsável pela ação de devolução das terras, e a Secretaria Especial de Política e Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que trabalha há oito anos pelos quilombos. Oito anos em que, segundo os quilombolas, nada mudou.
Os quilombolas queixam-se que o assalto à sua propriedade e aos seus direitos passou das mãos dos posseiros para a de funcionários públicos, Ongs, e toda sorte de “bem intencionados” que ora encontram no Cafundó uma mina de ouro. Na longa lista de desfalques, estão casos de desvio de verba, material de construção e até cestas básica do Fome Zero. Regina conta que quando reclamaram a ausência desse auxílio garantido pelo governo, receberam cestas adulteradas e incompletas. E o feijão que veio “não cozinha nem com reza brava”.
Por isso, cada vez mais os moradores deixam o bairro para viver em cidades vizinhas. Com o olhar de agonia, Marcos diz que não pretende ter filhos porque ainda não pode garantir a eles sequer o direito à terra.
O Cafundó ainda mantém grande parte da forma original do dialeto das tribos a que descendem. Muitas de suas histórias são também histórias do um passado quase esquecido.Mas gradativamente este universo de informação vai se perdendo. Um patrimônio imaterial da cultura nacional que corre o risco de desaparecer pelo descaso. Um problema bem brasileiro, que nem o mais idealista dos pastores angolanos pode resolver sozinho.
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Exemplos do dialeto cupopiano Nani: não – em geral é muito usado para palavras negativas como pouco, sem, pequeno.Vavuro: sim – muito usado em palavras positivas, como muito, com, gande.Cumbe: solCumbe nani: luaCumbe vavuro do téqui: sol grande da noite (lua cheia)Ture Nani: pouca TerraObiquanga do avero: tijolo de leite (queijo)Obiquanga do vava: tijolo de água (sabonete)Obiquanga do pepa: tijolo de farinha (pão)Tenhora da mucanda: enxada da escrta (caneta)Cambererá do vava: carne d’agua (peixe)Nanga do viso: roupa dos olhos (óculos)Coçumbador do cupópia: fazedor de fala (língua)Nhamanhara: homemAnguto: mulherNhapecava: café
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